segunda-feira, 1 de abril de 2013

A ditadura militar na minha vida



          Para muitos brasileiros, o 1º de abril é apenas o famoso "Dia da Mentira". Um dia de piadas, trotes, enganações. Para outros, que viveram em outra época e em outra realidade, é  ironicamente  um dia para se recordar de um dos mais trágicos e obscuros episódios da história nacional: o Golpe Militar de 1964. Hoje, este atentado à democracia completa 49 anos. Para muitos jovens, esta verdadeira mentira que se tornou verdade para alguns – a "revolução" – parece ser apenas mais um acontecimento histórico distante. Mas, para mim, não é.
          Como filho de um ex-militante comunista e ex-guerrilheiro "intelectual", como meu pai mesmo se denomina, a ditadura militar sempre esteve próxima, presente. Marcou minha infância, minha adolescência e ainda habita meus pensamentos, através de histórias e narrações daquela época que, apesar de não deixar saudades, jamais deverá ser esquecida. Para mim, o golpe militar não é uma data para ser comemorada. É uma data para ser apenas memorada, trazida à tona, recordada, para que possamos valorizar hoje a democracia que temos, ainda que esta seja má utilizada.
          Meu pai possui uma trajetória diferente da maioria dos militantes de esquerda. Nunca foi pobre, nunca passou por privações e foi criado longe da desigualdade social que sempre prevaleceu em nosso país. Vem de uma família de classe alta, "quatrocentona", com raízes monarquistas, tanto no Brasil como em Portugal, de onde chegou no começo do século XX meu bisavô, José Vaz dos Santos. Meu avô, José Vaz dos Santos Júnior, era um típico membro da elite paulistana do século XX. Durante a Revolução Constitucionalista de 1932, aos 20 anos de idade, deixou o curso de direito na Escola do Largo do São Francisco e se alistou na Força Pública de São Paulo, indo para a frente de batalha no Vale do Ribeira na posição de 2º tenente. Quando voltou a São Paulo, concluiu três anos depois o curso de direito, em 1935. Era fielmente anti-getulista, chamando Vargas de "o pigmeu dos Pampas". Fez parte da TFP e era simpatizante da Opus Dei, da qual sempre sonhou em ser supernumerário, sendo impedido por haver se casado com uma mulher não-católica – no caso, minha avó Zulema, que era cristã ortodoxa. Era abolicionista, ao contrário de seu irmão mais velho Fausto, mas sonhava com a retomada das "glórias" dos tempos do Império.
          Na infância, meu pai conviveu com diferentes realidades e posicionamentos ideológicos e políticos. De um lado, na família de meu avô, convivia com monarquistas e anti-abolicionistas, ouvindo de minha bisavó Geraldina suas histórias de infância em uma fazenda no Vale do Paraíba Fluminense, em Resende, onde ela nascera. De outro lado, na família de minha avó, ouvia histórias de pobreza, miséria, privações e violência imperialista, contadas por meu bisavô, Abdalla Ibrahim Haddad, imigrante sírio e um modesto comerciante de linhas e agulhas na Ladeira Porto Geral, no centro de São Paulo. Mas, a maior influência política e ideológica que sofreu meu pai veio, sem dúvida alguma, de seu tio Manuel, irmão caçula de meu avô. Um homem com "inteligência muito acima da média", de acordo com meu pai. Excêntrico, extremamente racional, tio Manuel se tornou abertamente comunista, para desgosto geral da família, após fazer amizade com operários anarco-sindicalistas italianos e espanhóis durante sua adolescência. Tio Manuel fez do meu pai, jovem que passou a infância no Pacaembu e a adolescência e juventude no Jardim Paulista, um homem crítico, com consciência social e extremamente politizado. Emprestou para meu pai "O Capital", de Karl Marx, livro lido por ele pela primeira vez aos 19 anos, em 1963. Assim se seguiram outras obras de pensadores importantes como Antonio Gramsci, Max Weber, Immanuel Kant, Friedrich Nietzsche e Émile Durkheim.
          Aos poucos, meu pai foi deixando de ser mais um jovem membro da elite paulistana, direitista e conservadora, para se tornar um jovem com pensamento progressista e socialmente consciente. Em 1964, durante o golpe militar, acompanhou de perto o desespero de tio Manuel, membro do PCB, na luta contra o regime. E foi assim, com o passar dos anos, que meu pai abandonou a faculdade de engenharia química na Escola de Engenharia Mauá em 1965 e o conforto da casa de meus avós na Rua Guadelupe dois anos depois, vendendo seu Willys Interlagos em 1968 para comprar um apartamento no bairro Ipiranga junto com companheiros do PCB que atuavam na clandestinidade, onde começariam a promover reuniões com membros do partido e de grupos de guerrilha de esquerda. Também conseguiram comprar um mimeógrafo e duas máquinas de escrever, com as quais faziam panfletos contra a ditadura para serem distribuídos em fábricas e universidades.
          Quando o AI-5 entrou em vigor, em 1969, as coisas tornaram-se ainda mais difíceis para aqueles que atuavam na clandestinidade. Tio Manuel se reuniu secretamente com Carlos Marighella em 1969 para se despedir do amigo e seguiu para a União Soviética, onde viveria até 1973, quando foi para a Argentina de Perón, figura que admirava profundamente. Meu pai, que naquele 1969 trabalhava no hoje já extinto IPESP (Instituto de Previdência do Estado de São Paulo), casou-se com uma companheira do PCB. A vida do casal tornou-se turbulenta. Viver na clandestinidade, principalmente nos anos que se seguiram ao AI-5, costumava gerar paranoia naqueles que se submetiam a este estilo de vida. Quando Marighella foi assassinado, em 4 de novembro de 1969, tudo se tornou ainda pior. A esquerda brasileira perdia um grande líder, tanto ideológico, quanto espiritual. E foi exatamente este episódio que fez com que meu pai se tornasse  membro da ALN (Ação Libertadora Nacional), em janeiro de 1970. Ainda que fosse adepto da não-violência, passou por treinamento de guerrilha no interior de São Paulo.
          Na ALN, meu pai sempre teve um papel muito mais intelectual e burocrático. Como bom virginiano que é, cuidava de pormenores no planejamento das ações feitas pelo grupo. Ao lado da sua primeira esposa, Anita, participou de algumas pequenas ações, sempre nos bastidores da guerrilha. Mas, as coisas se tornariam ainda piores ao longo do ano de 1970, após a prisão e o assassinato do então líder da ALN e sucessor de Marighella, Joaquim Câmara Ferreira. Também ainda naquele ano, Eduardo Collen Leite, um amigo próximo de meu pai e membro da ALN, foi preso, torturado e morto. A partir daí, tudo tornou-se ainda mais tenso e perigoso.
          Em fevereiro de 1971, enquanto estavam no apartamento onde viviam, na Rua Manifesto, no Ipiranga, meu pai e Anita foram presos e levados ao DOPS. Foram torturados da maneira clássica, com pau de arara e choques elétricos. Ao saber da prisão de meu pai através de um ex-companheiro seu do PCB, meu avô utilizou de seus contatos para tirá-lo da prisão. Fez contato com o então prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, com o qual possuía um distante parentesco através da família de minha avó; com o governador de São Paulo, Laudo Natel, que conhecera quando ainda era diretor-geral do IPESP; e com um de seus colegas veteranos da Revolução de 32 e membro da antiga Força Pública de São Paulo, agora chamada de Polícia Militar. Com isso, e pelo fato de meu pai ser considerado "peixe pequeno", meu avô conseguiu que meu pai fosse libertado, somente após três meses de sua prisão, mediante o pagamento de uma considerável suma de dinheiro.
          A esposa de meu pai, Anita, foi também libertada, dois meses após ele. Foram então aconselhados por um militar aposentado amigo de meu avô a saírem do Brasil rumo ao exílio. Porém, após pedidos emocionados de minha avó, meu pai se recusou a deixar o país. Foi então que se divorciou de Anita, que seguiu para a Argentina em outubro daquele mesmo ano. Nunca mais se falaram. Meu pai, permanecendo no Brasil, prometeu aos meus avós permanecer longe das atividades clandestinas, coisa que relutou a fazer. Mas, aos poucos, ao presenciar o que ele chamava de "inoperância popular" brasileira perante à ditadura, foi se desencantado e tornando-se desesperançoso em relação à uma possível derrota e interrupção do regime militar brasileiro, acabando por afastar-se totalmente das atividades políticas clandestinas no começo de 1972.
          Porém, todos estes fatos descritos aqui, memórias daqueles tempos difíceis, jamais abandonaram meu pai. Suas convicções e ideias, seu sonho de uma sociedade brasileira mais justa e igualitária, jamais morreram. Ainda não morreram, apesar de seu enorme ceticismo político de hoje. E, por minha sorte, cada um destes ideais me foram passados, fazendo de mim o jovem igualmente politizado que sou hoje, como o sr. Joel Mário também o foi nos anos 60. E me orgulho disso. Sou filho de terrorista, subversivo, com muitíssimo orgulho.
          Hoje, 49 anos após aqueles acontecimentos de abril de 1964, a luta continua. O inimigo é o mesmo. Não pego em armas, uma vez que esta luta mudou de frente. Não é mais disputada na clandestinidade, com armas de fogo e através de ações de guerrilha. É disputada nas urnas e, principalmente, na internet. Me considero um guerrilheiro virtual. Minhas inspirações principais não são Marighella e Lamarca, e sim Luiz Carlos Azenha, Luís Nassif, Cynara Menezes, Eduardo Guimarães, Paulo Henrique Amorim, entre outros blogueiros "sujos". Sujos e subversivos aos olhos daqueles que apoiaram a ditadura militar brasileira e que dela são "filhotes" – como diria o velho Brizola – e viúvos. Sou mais um sujo, mais um subversivo. Com muito orgulho. Faz parte de mim, está no meu sangue.