Nos últimos dias, temos visto algo novo surgir no Brasil, como há muito tempo não víamos. Um número elevadíssimo de pessoas manifestando-se, tomando para si as ruas, gritando palavras de ordem e lutando por uma causa. As quatro manifestações já organizadas pelo MPL (Movimento Passe Livre), que tem como principal bandeira a gratuidade no sistema de transporte coletivo, tiveram como foco, no início, a luta pela redução na tarifa de ônibus, cujo aumento este ano a elevou ao valor de R$ 3,20. Apesar de se tratar de um aumento já esperado, o que não ocorria há um ano e que este tenha sido, ao contrário do que ocorreu das últimas três vezes, abaixo da inflação, ele foi extremamente mal recebido. Houve um esforço orçamentário por parte da prefeitura para que isto fosse possível. O aumento, de 6,67% no valor das passagens de ônibus, foi menor do que a inflação acumulada desde janeiro de 2011 (14,4%). Devido a isso, a prefeitura terá um subsídio recorde para o sistema de ônibus este ano, totalizando R$ 1,25 bilhão ao longo do ano de 2013.
Porém, após as primeira manifestações, que foram se tornando mais e mais conhecidas e recebendo um número cada vez maior de participantes, surgiu um lema. "Não é sobre 20 centavos", tornou-se o mote das manifestações, circulando, principalmente, pelas redes sociais em forma de imagens e textos explicativos. E, realmente, está claro que a questão não é mais vinte centavos. Principalmente porque boa parte das pessoas que aderiram ao "movimento" sequer usam ônibus como meios de transporte. De acordo com uma pesquisa feita em um dos dias de manifestações, 51% dos participantes ali presentes não utilizam o transporte público. Portanto, é chegada a hora de nos questionarmos: o que estamos vendo nas ruas? Que movimento é este que foi além do MPL e se tornou um fenômeno sócio-político que se diz apartidário, sem líderes, popular e, aparentemente, sem objetivos?
Podemos começar a análise da seguinte maneira: estas manifestações foram todas marcadas através de eventos criados na rede social Facebook, muito popular entre usuários de internet de todas as faixas etárias, classes sociais e etc. Portanto, as chances de um movimento que surge em um ambiente assim se tornar heterogêneo, são enormes. Este que vos escreve pode, aliás, fazer uma perfeita análise do que se tornou parte deste movimento, independente do MPL e da questão da tarifa zero. Conhecidos meus com os quais convivo diariamente dentro e fora da rede social já citada, ex-colegas de trabalho, amigos reais e virtuais, resolveram aderir em peso às manifestações. Passaram a apoiá-las de maneira incondicional e passional. Porém, algumas destas pessoas estão muito longe de ter um mentalidade revolucionária ou, até mesmo, política. Muitos deles se declaram, orgulhosamente, "apolíticos". Outros simplesmente dizem não gostar ou não entender sobre a matéria. A não ser em época de eleição, é claro. Então, como em um passe de mágica, todos tornaram-se seres politizados, conscientes e revolucionários. Alguns até mesmo entoaram o canto do "poder popular", de "lutar pelos direitos do povo". Entre estes, encontram-se algumas figuras com perfil já conhecido por aqueles que estão acostumados a, como eu, conviver com a boa e velha classe média paulistana. Alguns são classistas, extremamente classistas. O preconceito social habita em muitos deles, ainda que de forma disfarçada, como se espera da maior parte dos preconceitos. Um de meus conhecidos, que esta semana esteve na Paulista enfrentando a polícia e gritando palavras de ordem, há alguns dias atrás, havia me dito durante uma conversar informal, "preguiça de ir para casa nesse ônibus cheio de gente pobre". Ao que rebati, "muito simples, comece a andar de carro". A resposta dele foi "não vale a pena, pois eu perderia muito mais tempo no trânsito". Pelo visto, ao menos para este revolucionário, vinte centavos não seriam problema. Somente o tempo. Poderia citar outros exemplos, como pessoas que sempre criticaram meu caráter "revolucionário" ou "esquerdista". Pois é, agora estão se sentindo representadas por partidos que estiveram presentes nas manifestações, como PSOL e PSTU. Quem diria! Uma verdadeira guinada à esquerda.
Mas, a este ponto, o leitor pode estar me questionando: "mas isso não é bom?". De certa maneira, é claro que é. Politizar-se é a melhor arma para conquistar seus direitos, votando com consciência, abandonando o egoísmo e, muitas vezes, pensando nos direitos dos outros e não somente nos seus próprios e nos de sua classe. Portanto, esta onda politizadora seria, em tese, excelente para o futuro do Brasil. Como muitos têm repetido "o Brasil acordou", "o brasileiro acordou", "o gigante despertou". Mas que ótimo! Fico feliz. O que me assusta, na verdade, é o caráter genérico e vazio de todo este despertar. Existe, ao invés de um caráter de esquerda em todo esse movimento, um pingo de anarquismo. E é exatamente isso que me faz ter medo. O Brasil acordou? Para que? Contra a autoridade? Contra os abusos cometidos por ela?
Em julho de 2007 surgiu no Brasil o Movimento Cívico pelo Direito dos Brasileiros, mais conhecido por seu slogan: "Cansei". Ele surgiu junto à sociedade civil após o acidente com o voo 3054 da TAM. Se diz "apolítico", mas sua principal bandeira é a "reflexão" sobre a "desordem" da administração pública durante o governo Lula. Somente do governo Lula. O movimento "Cansei" recebeu apoio de diversas celebridades, como a saudosa apresentadora malufista, Hebe Camargo; a cantora que não gosta de pagar encargos trabalhistas a ex-funcionários, Ivete Sangalo; a apresentadora de televisão que pendura tomates ao invés de melancias no pescoço para chamar atenção, Ana Maria Braga; e a eterna namoradinha da direita brasileira, a amedrontada atriz Regina Duarte. Outros nomes do jet-set brasileiro também reforçaram o coro do "Cansei", como o empresário João Dória Jr., a socialite Beth Szafir e o então presidente da OAB-SP, Luis Flávio Borges D'Urso. Porém, o movimento perdeu, aos poucos, a visibilidade, principalmente devido ao seu caráter claramente elitista e à falta de intelectuais reforçando suas bases. Mas, o que mais pode ter contribuído para que o "Cansei" perdesse força, foi seu caráter genérico, sem reivindicações claras e fundamentadas. Tornou-se um movimento de indignados, cujas declarações tornaram-se apenas símbolos de um "mimimi" político, uma choradeira ideológica infundada. E é nesta hora, ao falarmos de indignação, que a via que transporta o posicionamento genérico do movimento "Cansei" cruza-se com o viés igualmente genérico das "reivindicações" feitas pelas atuais manifestações que têm tomado as ruas de São Paulo, independente da questão do aumento das passagens.
Aliás, por falar em aumento, é bom que algo seja dito. Em 2006, após assumir a prefeitura com o abandono prematuro de José Serra do governo municipal, uma das primeiras ações tomadas pelo recém-empossado Gilberto Kassab, foi reajustar o valor da tarifa dos ônibus, elevando-a para R$ 2,30. O valor foi, na época, reajustado acima da inflação. O próprio Kassab ainda faria mais dois reajustes. O primeiro, em 2010, quando quebrou uma de suas promessas de campanha e elevou a tarifa para R$ 2,70. E o segundo, em 2011, quando o valor da passagem passou de R$ 2,70 para R$ 3,00. Em ambas as vezes, o ajuste foi bem acima da inflação. Em seu último ano de governo, que foi 2012, Kassab não reajustou a tarifa. Estava em ano de eleição, não queria se queimar. Deixou a bomba para seu sucessor que, como ele já sabia, havia prometido mundos e fundos para melhorar o transporte público em São Paulo e, inevitavelmente, precisaria de uma fonte de renda para realizar seus projetos. Aliás, a desculpa para os aumentos de Kassab eram sempre os mesmos: renovação da frota. Em 2012, a frota de ônibus em São Paulo estava sucateada. O então prefeito também havia prometido fazer 66 km de corredores de ônibus na cidade. Ao final de sua gestão em 2012, ele entregou 0 (zero) km. Mas, parece que isso não foi o suficiente para que Kassab, cuja administração foi marcada por proibições de todos os tipos, leis higienistas, incêndios em favelas e o descaso total para com a população, enfrentasse uma guerrilha urbana como a que temos visto hoje. Com Fernando Haddad, ao contrário do que aconteceu com seu antecessor, R$ 0,20 foram suficientes para se tornarem a "gota d'água" no copo do sutil e seletivo inconformismo paulistano. Mas, está bem. "Não é sobre 20 centavos", é bom não esquecer.
E se a questão já não é mais os vinte centavos, qual será ela? Qual será o propósito desta pequena revolução urbana? Descaso do governo para com o cidadão? A ineficácia do "Estado"? As autoridades, sejam elas quais forem? Ou, para sermos ainda mais genéricos, o movimento é contra o "sistema"? Qual sistema? Meus conhecidos orgulhosamente capitalistas não devem estar gostando muito dessa história de ir contra o "sistema". A não ser que seja contra o sistema de transporte público. Neste caso, seria compreensível a indignação, ainda que tenha demorado muito a chegar. Mas, para muitos dos que têm participado das manifestações, especialmente em São Paulo, ela não possui foco. É somente uma indignação genérica, que vem sendo reforçada nos últimos anos pela mídia e seu denuncismo dos casos de corrupção, somente de um lado, e seu terrorismo, principalmente em relação à economia do país. Tanto é que, dia destes, vi uma imagem que relacionava os vinte centavos à uma gota d'água, que caía em um copo cheio de palavras, entre elas, a inflação. Aquela mesma, que tem sido utilizada pela mídia para assustar a população e desprestigiar a imagem nacional lá fora. Pelo visto, funcionou. E mesmo que o Brasil tenha "acordado" e alguns estejam começando a enxergar, graças à já conhecida cobertura parcial que a imprensa vem fazendo das manifestações, quem acaba de acordar muitas vezes ainda demora para abrir os olhos. Logo, muitos ainda não enxergaram que, em meio à esta indignação genérica, há muita mentira e muita desonestidade intelectual transformando pessoas bem intencionadas em uma massa de manobra. Mesmo que este não seja o objetivo de nossa mídia no momento, já que ela tem pavor de ver o povo nas ruas.
Então, muitos parecem ter "acordado". Principalmente aqueles pertencentes à classe média indignada. Esta classe social, cuja principal preocupação é o dinheiro, não conhecia nenhum outro poder além do financeiro. Agora, estão começando a conhecer um poder que, historicamente, pertence às classe trabalhadoras e às camadas populares: o movimento social. Mas, este poder é muito peculiar. Ele não pode ser comprado e nem adquirido com um iPhone. Nem que se pague muito caro por ele, como se faz com objetos que são sinônimos de status. Um movimento social é conquistado. E, sobretudo, deve ser alimentado. Portanto, aqueles que se usurpam, ainda que momentaneamente, de um movimento social, precisam estar atentos, pois o povo, aquele com o qual grande parte da classe média jamais se preocupou e com o qual sequer simpatiza, acaba abrindo os olhos, cedo ou tarde. Então, é bom que estes que acabam de acordar, não levantem de suas camas com muita força, buscando passar por cima da vontade daqueles que estão acordados e de pé na luta já há muitos anos. Podem acabar cambaleando e caindo. O povo, o povão, a massa, os trabalhadores, sabem que os representa. Sabem quais são suas bandeiras. O povo, aquele que quer pleno emprego, estabilidade e segurança econômica no país que ajudaram a construir, não aceitará que a pequena burguesia se usurpe de uma causa para impor sua agenda egoísta e reacionária. O povo não permitirá que, aqueles que já não conseguem mais vencer nas urnas, busquem, através do caos e do enfraquecimento das estruturas de poder, derrubar o Estado democrático e o governo popular legitimamente eleito.
É por isso que devemos então separar o joio do trigo. Devemos ter consciência para enxergarmos o dois lados da moeda. Primeiro, temos um movimento de caráter popular, cuja reivindicação é justa e cuja bandeira, a da tarifa zero nos transportes, deve ser carregada com força e destreza, fazendo com que esta flameie perante nossos governantes, que são funcionários públicos representantes do povo, e devem sempre buscar atender os interesses da população. Um povo que reivindica e luta por suas causas é um povo digno. Mas, deve-se lutar sempre. Como disse Bertold Brecht: "Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida, estes são imprescindíveis". Então, é bom que o outro lado da moeda que devemos enxergar, a classe média costumeiramente indignada, não tente usurpar para si o poder verdadeiramente popular. O povo vota. Muitos lutam há anos. Jamais aceitarão que seu poder seja usurpado por uns poucos que não se sentem capazes de obter vitórias nas urnas, para poderem assim, imporem sua agenda egoísta e mesquinha, que já provou ser incompatível com os anseios da população. E, sobretudo, que a pequena burguesia, como de costume, não se sinta iluminada, superior intelectualmente, estando assim na obrigação de "libertar" o povo. Isto é inaceitável! A realidade de uma nação não se muda de uma hora para outra. Recomendo que continuem com suas pautas de sempre: reclamem do "assistencialismo", da carga tributária elevada, dos impostos sobre produtos importados, sobre o custo dos sedãs médios no mercado brasileiro, sobre o valor de produtos como iPhone, iPad, entre outros. Continuem pregando a meritocracia, a mesquinhez e a futilidade. Ou então, se realmente quiserem, acordem. Mas acordem de verdade. Unam-se a aqueles que já estão acordados há muitos anos. Deixem de lado suas reivindicações fúteis. Aprendam a viver em sociedade e, sobretudo, a respeitarem a vontade soberana de um povo que elege seus representantes. Não tentem enfraquecer o Estado democrático simplesmente porque resolveram acordar de anos de uma alienação solitária. Cobrem reformas. Não venham revolucionar o território alheio. Ele pertence ao povo! Se quiserem derrubar algo, utilizem a mesma arma que vem sendo usada pelos trabalhadores nos últimos anos para defender suas conquistas: as urnas! E, acima de tudo, não queiram sabotar o país. A classe média já causou danos demais ao Brasil com suas escolhas políticas infelizes. Deixem agora que o trabalhador goze da estabilidade que ele, como sempre sozinho e com determinação, lutou para conquistar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário