sábado, 15 de junho de 2013

A pequena burguesia insurgente




          Nos últimos dias, temos visto algo novo surgir no Brasil, como há muito tempo não víamos. Um número elevadíssimo de pessoas manifestando-se, tomando para si as ruas, gritando palavras de ordem e lutando por uma causa. As quatro manifestações já organizadas pelo MPL (Movimento Passe Livre), que tem como principal bandeira a gratuidade no sistema de transporte coletivo, tiveram como foco, no início, a luta pela redução na tarifa de ônibus, cujo aumento este ano a elevou ao valor de R$ 3,20. Apesar de se tratar de um aumento já esperado, o que não ocorria há um ano e que este tenha sido, ao contrário do que ocorreu das últimas três vezes, abaixo da inflação, ele foi extremamente mal recebido. Houve um esforço orçamentário por parte da prefeitura para que isto fosse possível. O aumento, de 6,67% no valor das passagens de ônibus, foi menor do que a inflação acumulada desde janeiro de 2011 (14,4%). Devido a isso, a prefeitura terá um subsídio recorde para o sistema de ônibus este ano, totalizando R$ 1,25 bilhão ao longo do ano de 2013.
          Porém, após as primeira manifestações, que foram se tornando mais e mais conhecidas e recebendo um número cada vez maior de participantes, surgiu um lema. "Não é sobre 20 centavos", tornou-se o mote das manifestações, circulando, principalmente, pelas redes sociais em forma de imagens e textos explicativos. E, realmente, está claro que a questão não é mais vinte centavos. Principalmente porque boa parte das pessoas que aderiram ao "movimento" sequer usam ônibus como meios de transporte. De acordo com uma pesquisa feita em um dos dias de manifestações, 51% dos participantes ali presentes não utilizam o transporte público. Portanto, é chegada a hora de nos questionarmos: o que estamos vendo nas ruas? Que movimento é este que foi além do MPL e se tornou um fenômeno sócio-político que se diz apartidário, sem líderes, popular e, aparentemente, sem objetivos?
          Podemos começar a análise da seguinte maneira: estas manifestações foram todas marcadas através de eventos criados na rede social Facebook, muito popular entre usuários de internet de todas as faixas etárias, classes sociais e etc. Portanto, as chances de um movimento que surge em um ambiente assim se tornar heterogêneo, são enormes. Este que vos escreve pode, aliás, fazer uma perfeita análise do que se tornou parte deste movimento, independente do MPL e da questão da tarifa zero. Conhecidos meus com os quais convivo diariamente dentro e fora da rede social já citada, ex-colegas de trabalho, amigos reais e virtuais, resolveram aderir em peso às manifestações. Passaram a apoiá-las de maneira incondicional e passional. Porém, algumas destas pessoas estão muito longe de ter um mentalidade revolucionária ou, até mesmo, política. Muitos deles se declaram, orgulhosamente, "apolíticos". Outros simplesmente dizem não gostar ou não entender sobre a matéria. A não ser em época de eleição, é claro. Então, como em um passe de mágica, todos tornaram-se seres politizados, conscientes e revolucionários. Alguns até mesmo entoaram o canto do "poder popular", de "lutar pelos direitos do povo". Entre estes, encontram-se algumas figuras com perfil já conhecido por aqueles que estão acostumados a, como eu, conviver com a boa e velha classe média paulistana. Alguns são classistas, extremamente classistas. O preconceito social habita em muitos deles, ainda que de forma disfarçada, como se espera da maior parte dos preconceitos. Um de meus conhecidos, que esta semana esteve na Paulista enfrentando a polícia e gritando palavras de ordem, há alguns dias atrás, havia me dito durante uma conversar informal, "preguiça de ir para casa nesse ônibus cheio de gente pobre". Ao que rebati, "muito simples, comece a andar de carro". A resposta dele foi "não vale a pena, pois eu perderia muito mais tempo no trânsito". Pelo visto, ao menos para este revolucionário, vinte centavos não seriam problema. Somente o tempo. Poderia citar outros exemplos, como pessoas que sempre criticaram meu caráter "revolucionário" ou "esquerdista". Pois é, agora estão se sentindo representadas por partidos que estiveram presentes nas manifestações, como PSOL e PSTU. Quem diria! Uma verdadeira guinada à esquerda.
          Mas, a este ponto, o leitor pode estar me questionando: "mas isso não é bom?". De certa maneira, é claro que é. Politizar-se é a melhor arma para conquistar seus direitos, votando com consciência, abandonando o egoísmo e, muitas vezes, pensando nos direitos dos outros e não somente nos seus próprios e nos de sua classe. Portanto, esta onda politizadora seria, em tese, excelente para o futuro do Brasil. Como muitos têm repetido "o Brasil acordou", "o brasileiro acordou", "o gigante despertou". Mas que ótimo! Fico feliz. O que me assusta, na verdade, é o caráter genérico e vazio de todo este despertar. Existe, ao invés de um caráter de esquerda em todo esse movimento, um pingo de anarquismo. E é exatamente isso que me faz ter medo. O Brasil acordou? Para que? Contra a autoridade? Contra os abusos cometidos por ela?
          Em julho de 2007 surgiu no Brasil o Movimento Cívico pelo Direito dos Brasileiros, mais conhecido por seu slogan: "Cansei". Ele surgiu junto à sociedade civil após o acidente com o voo 3054 da TAM. Se diz "apolítico", mas sua principal bandeira é a "reflexão" sobre a "desordem" da administração pública durante o governo Lula. Somente do governo Lula. O movimento "Cansei" recebeu apoio de diversas celebridades, como a saudosa apresentadora malufista, Hebe Camargo; a cantora que não gosta de pagar encargos trabalhistas a ex-funcionários, Ivete Sangalo; a apresentadora de televisão que pendura tomates ao invés de melancias no pescoço para chamar atenção, Ana Maria Braga; e a eterna namoradinha da direita brasileira, a amedrontada atriz Regina Duarte. Outros nomes do jet-set brasileiro também reforçaram o coro do "Cansei", como o empresário João Dória Jr., a socialite Beth Szafir e o então presidente da OAB-SP, Luis Flávio Borges D'Urso. Porém, o movimento perdeu, aos poucos, a visibilidade, principalmente devido ao seu caráter claramente elitista e à falta de intelectuais reforçando suas bases. Mas, o que mais pode ter contribuído para que o "Cansei" perdesse força, foi seu caráter genérico, sem reivindicações claras e fundamentadas. Tornou-se um movimento de indignados, cujas declarações tornaram-se apenas símbolos de um "mimimi" político, uma choradeira ideológica infundada. E é nesta hora, ao falarmos de indignação, que a via que transporta o posicionamento genérico do movimento "Cansei" cruza-se com o viés igualmente genérico das "reivindicações" feitas pelas atuais manifestações que têm tomado as ruas de São Paulo, independente da questão do aumento das passagens.
          Aliás, por falar em aumento, é bom que algo seja dito. Em 2006, após assumir a prefeitura com o abandono prematuro de José Serra do governo municipal, uma das primeiras ações tomadas pelo recém-empossado Gilberto Kassab, foi reajustar o valor da tarifa dos ônibus, elevando-a para R$ 2,30. O valor foi, na época, reajustado acima da inflação. O próprio Kassab ainda faria mais dois reajustes. O primeiro, em 2010, quando quebrou uma de suas promessas de campanha e elevou a tarifa para R$ 2,70. E o segundo, em 2011, quando o valor da passagem passou de R$ 2,70 para R$ 3,00. Em ambas as vezes, o ajuste foi bem acima da inflação. Em seu último ano de governo, que foi 2012, Kassab não reajustou a tarifa. Estava em ano de eleição, não queria se queimar. Deixou a bomba para seu sucessor que, como ele já sabia, havia prometido mundos e fundos para melhorar o transporte público em São Paulo e, inevitavelmente, precisaria de uma fonte de renda para realizar seus projetos. Aliás, a desculpa para os aumentos de Kassab eram sempre os mesmos: renovação da frota. Em 2012, a frota de ônibus em São Paulo estava sucateada. O então prefeito também havia prometido fazer 66 km de corredores de ônibus na cidade. Ao final de sua gestão em 2012, ele entregou 0 (zero) km. Mas, parece que isso não foi o suficiente para que Kassab, cuja administração foi marcada por proibições de todos os tipos, leis higienistas, incêndios em favelas e o descaso total para com a população, enfrentasse uma guerrilha urbana como a que temos visto hoje. Com Fernando Haddad, ao contrário do que aconteceu com seu antecessor, R$ 0,20 foram suficientes para se tornarem a "gota d'água" no copo do sutil e seletivo inconformismo paulistano. Mas, está bem. "Não é sobre 20 centavos", é bom não esquecer.
          E se a questão já não é mais os vinte centavos, qual será ela? Qual será o propósito desta pequena revolução urbana? Descaso do governo para com o cidadão? A ineficácia do "Estado"? As autoridades, sejam elas quais forem? Ou, para sermos ainda mais genéricos, o movimento é contra o "sistema"? Qual sistema? Meus conhecidos orgulhosamente capitalistas não devem estar gostando muito dessa história de ir contra o "sistema". A não ser que seja contra o sistema de transporte público. Neste caso, seria compreensível a indignação, ainda que tenha demorado muito a chegar. Mas, para muitos dos que têm participado das manifestações, especialmente em São Paulo, ela não possui foco. É somente uma indignação genérica, que vem sendo reforçada nos últimos anos pela mídia e seu denuncismo dos casos de corrupção, somente de um lado, e seu terrorismo, principalmente em relação à economia do país. Tanto é que, dia destes, vi uma imagem que relacionava os vinte centavos à uma gota d'água, que caía em um copo cheio de palavras, entre elas, a inflação. Aquela mesma, que tem sido utilizada pela mídia para assustar a população e desprestigiar a imagem nacional lá fora. Pelo visto, funcionou. E mesmo que o Brasil tenha "acordado" e alguns estejam começando a enxergar, graças à já conhecida cobertura parcial que a imprensa vem fazendo das manifestações, quem acaba de acordar muitas vezes ainda demora para abrir os olhos. Logo, muitos ainda não enxergaram que, em meio à esta indignação genérica, há muita mentira e muita desonestidade intelectual transformando pessoas bem intencionadas em uma massa de manobra. Mesmo que este não seja o objetivo de nossa mídia no momento, já que ela tem pavor de ver o povo nas ruas.
          Então, muitos parecem ter "acordado". Principalmente aqueles pertencentes à classe média indignada. Esta classe social, cuja principal preocupação é o dinheiro, não conhecia nenhum outro poder além do financeiro. Agora, estão começando a conhecer um poder que, historicamente, pertence às classe trabalhadoras e às camadas populares: o movimento social. Mas, este poder é muito peculiar. Ele não pode ser comprado e nem adquirido com um iPhone. Nem que se pague muito caro por ele, como se faz com objetos que são sinônimos de status. Um movimento social é conquistado. E, sobretudo, deve ser alimentado. Portanto, aqueles que se usurpam, ainda que momentaneamente, de um movimento social, precisam estar atentos, pois o povo, aquele com o qual grande parte da classe média jamais se preocupou e com o qual sequer simpatiza, acaba abrindo os olhos, cedo ou tarde. Então, é bom que estes que acabam de acordar, não levantem de suas camas com muita força, buscando passar por cima da vontade daqueles que estão acordados e de pé na luta já há muitos anos. Podem acabar cambaleando e caindo. O povo, o povão, a massa, os trabalhadores, sabem que os representa. Sabem quais são suas bandeiras. O povo, aquele que quer pleno emprego, estabilidade e segurança econômica no país que ajudaram a construir, não aceitará que a pequena burguesia se usurpe de uma causa para impor sua agenda egoísta e reacionária. O povo não permitirá que, aqueles que já não conseguem mais vencer nas urnas, busquem, através do caos e do enfraquecimento das estruturas de poder, derrubar o Estado democrático e o governo popular legitimamente eleito.
          É por isso que devemos então separar o joio do trigo. Devemos ter consciência para enxergarmos o dois lados da moeda. Primeiro, temos um movimento de caráter popular, cuja reivindicação é justa e cuja bandeira, a da tarifa zero nos transportes, deve ser carregada com força e destreza, fazendo com que esta flameie perante nossos governantes, que são funcionários públicos representantes do povo, e devem sempre buscar atender os interesses da população. Um povo que reivindica e luta por suas causas é um povo digno. Mas, deve-se lutar sempre. Como disse Bertold Brecht: "Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida, estes são imprescindíveis". Então, é bom que o outro lado da moeda que devemos enxergar, a classe média costumeiramente indignada, não tente usurpar para si o poder verdadeiramente popular. O povo vota. Muitos lutam há anos. Jamais aceitarão que seu poder seja usurpado por uns poucos que não se sentem capazes de obter vitórias nas urnas, para poderem assim, imporem sua agenda egoísta e mesquinha, que já provou ser incompatível com os anseios da população. E, sobretudo, que a pequena burguesia, como de costume, não se sinta iluminada, superior intelectualmente, estando assim na obrigação de "libertar" o povo. Isto é inaceitável! A realidade de uma nação não se muda de uma hora para outra. Recomendo que continuem com suas pautas de sempre: reclamem do "assistencialismo", da carga tributária elevada, dos impostos sobre produtos importados, sobre o custo dos sedãs médios no mercado brasileiro, sobre o valor de produtos como iPhone, iPad, entre outros. Continuem pregando a meritocracia, a mesquinhez e a futilidade. Ou então, se realmente quiserem, acordem. Mas acordem de verdade. Unam-se a aqueles que já estão acordados há muitos anos. Deixem de lado suas reivindicações fúteis. Aprendam a viver em sociedade e, sobretudo, a respeitarem a vontade soberana de um povo que elege seus representantes. Não tentem enfraquecer o Estado democrático simplesmente porque resolveram acordar de anos de uma alienação solitária. Cobrem reformas. Não venham revolucionar o território alheio. Ele pertence ao povo! Se quiserem derrubar algo, utilizem a mesma arma que vem sendo usada pelos trabalhadores nos últimos anos para defender suas conquistas: as urnas! E, acima de tudo, não queiram sabotar o país. A classe média já causou danos demais ao Brasil com suas escolhas políticas infelizes. Deixem agora que o trabalhador goze da estabilidade que ele, como sempre sozinho e com determinação, lutou para conquistar.



segunda-feira, 1 de abril de 2013

A ditadura militar na minha vida



          Para muitos brasileiros, o 1º de abril é apenas o famoso "Dia da Mentira". Um dia de piadas, trotes, enganações. Para outros, que viveram em outra época e em outra realidade, é  ironicamente  um dia para se recordar de um dos mais trágicos e obscuros episódios da história nacional: o Golpe Militar de 1964. Hoje, este atentado à democracia completa 49 anos. Para muitos jovens, esta verdadeira mentira que se tornou verdade para alguns – a "revolução" – parece ser apenas mais um acontecimento histórico distante. Mas, para mim, não é.
          Como filho de um ex-militante comunista e ex-guerrilheiro "intelectual", como meu pai mesmo se denomina, a ditadura militar sempre esteve próxima, presente. Marcou minha infância, minha adolescência e ainda habita meus pensamentos, através de histórias e narrações daquela época que, apesar de não deixar saudades, jamais deverá ser esquecida. Para mim, o golpe militar não é uma data para ser comemorada. É uma data para ser apenas memorada, trazida à tona, recordada, para que possamos valorizar hoje a democracia que temos, ainda que esta seja má utilizada.
          Meu pai possui uma trajetória diferente da maioria dos militantes de esquerda. Nunca foi pobre, nunca passou por privações e foi criado longe da desigualdade social que sempre prevaleceu em nosso país. Vem de uma família de classe alta, "quatrocentona", com raízes monarquistas, tanto no Brasil como em Portugal, de onde chegou no começo do século XX meu bisavô, José Vaz dos Santos. Meu avô, José Vaz dos Santos Júnior, era um típico membro da elite paulistana do século XX. Durante a Revolução Constitucionalista de 1932, aos 20 anos de idade, deixou o curso de direito na Escola do Largo do São Francisco e se alistou na Força Pública de São Paulo, indo para a frente de batalha no Vale do Ribeira na posição de 2º tenente. Quando voltou a São Paulo, concluiu três anos depois o curso de direito, em 1935. Era fielmente anti-getulista, chamando Vargas de "o pigmeu dos Pampas". Fez parte da TFP e era simpatizante da Opus Dei, da qual sempre sonhou em ser supernumerário, sendo impedido por haver se casado com uma mulher não-católica – no caso, minha avó Zulema, que era cristã ortodoxa. Era abolicionista, ao contrário de seu irmão mais velho Fausto, mas sonhava com a retomada das "glórias" dos tempos do Império.
          Na infância, meu pai conviveu com diferentes realidades e posicionamentos ideológicos e políticos. De um lado, na família de meu avô, convivia com monarquistas e anti-abolicionistas, ouvindo de minha bisavó Geraldina suas histórias de infância em uma fazenda no Vale do Paraíba Fluminense, em Resende, onde ela nascera. De outro lado, na família de minha avó, ouvia histórias de pobreza, miséria, privações e violência imperialista, contadas por meu bisavô, Abdalla Ibrahim Haddad, imigrante sírio e um modesto comerciante de linhas e agulhas na Ladeira Porto Geral, no centro de São Paulo. Mas, a maior influência política e ideológica que sofreu meu pai veio, sem dúvida alguma, de seu tio Manuel, irmão caçula de meu avô. Um homem com "inteligência muito acima da média", de acordo com meu pai. Excêntrico, extremamente racional, tio Manuel se tornou abertamente comunista, para desgosto geral da família, após fazer amizade com operários anarco-sindicalistas italianos e espanhóis durante sua adolescência. Tio Manuel fez do meu pai, jovem que passou a infância no Pacaembu e a adolescência e juventude no Jardim Paulista, um homem crítico, com consciência social e extremamente politizado. Emprestou para meu pai "O Capital", de Karl Marx, livro lido por ele pela primeira vez aos 19 anos, em 1963. Assim se seguiram outras obras de pensadores importantes como Antonio Gramsci, Max Weber, Immanuel Kant, Friedrich Nietzsche e Émile Durkheim.
          Aos poucos, meu pai foi deixando de ser mais um jovem membro da elite paulistana, direitista e conservadora, para se tornar um jovem com pensamento progressista e socialmente consciente. Em 1964, durante o golpe militar, acompanhou de perto o desespero de tio Manuel, membro do PCB, na luta contra o regime. E foi assim, com o passar dos anos, que meu pai abandonou a faculdade de engenharia química na Escola de Engenharia Mauá em 1965 e o conforto da casa de meus avós na Rua Guadelupe dois anos depois, vendendo seu Willys Interlagos em 1968 para comprar um apartamento no bairro Ipiranga junto com companheiros do PCB que atuavam na clandestinidade, onde começariam a promover reuniões com membros do partido e de grupos de guerrilha de esquerda. Também conseguiram comprar um mimeógrafo e duas máquinas de escrever, com as quais faziam panfletos contra a ditadura para serem distribuídos em fábricas e universidades.
          Quando o AI-5 entrou em vigor, em 1969, as coisas tornaram-se ainda mais difíceis para aqueles que atuavam na clandestinidade. Tio Manuel se reuniu secretamente com Carlos Marighella em 1969 para se despedir do amigo e seguiu para a União Soviética, onde viveria até 1973, quando foi para a Argentina de Perón, figura que admirava profundamente. Meu pai, que naquele 1969 trabalhava no hoje já extinto IPESP (Instituto de Previdência do Estado de São Paulo), casou-se com uma companheira do PCB. A vida do casal tornou-se turbulenta. Viver na clandestinidade, principalmente nos anos que se seguiram ao AI-5, costumava gerar paranoia naqueles que se submetiam a este estilo de vida. Quando Marighella foi assassinado, em 4 de novembro de 1969, tudo se tornou ainda pior. A esquerda brasileira perdia um grande líder, tanto ideológico, quanto espiritual. E foi exatamente este episódio que fez com que meu pai se tornasse  membro da ALN (Ação Libertadora Nacional), em janeiro de 1970. Ainda que fosse adepto da não-violência, passou por treinamento de guerrilha no interior de São Paulo.
          Na ALN, meu pai sempre teve um papel muito mais intelectual e burocrático. Como bom virginiano que é, cuidava de pormenores no planejamento das ações feitas pelo grupo. Ao lado da sua primeira esposa, Anita, participou de algumas pequenas ações, sempre nos bastidores da guerrilha. Mas, as coisas se tornariam ainda piores ao longo do ano de 1970, após a prisão e o assassinato do então líder da ALN e sucessor de Marighella, Joaquim Câmara Ferreira. Também ainda naquele ano, Eduardo Collen Leite, um amigo próximo de meu pai e membro da ALN, foi preso, torturado e morto. A partir daí, tudo tornou-se ainda mais tenso e perigoso.
          Em fevereiro de 1971, enquanto estavam no apartamento onde viviam, na Rua Manifesto, no Ipiranga, meu pai e Anita foram presos e levados ao DOPS. Foram torturados da maneira clássica, com pau de arara e choques elétricos. Ao saber da prisão de meu pai através de um ex-companheiro seu do PCB, meu avô utilizou de seus contatos para tirá-lo da prisão. Fez contato com o então prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, com o qual possuía um distante parentesco através da família de minha avó; com o governador de São Paulo, Laudo Natel, que conhecera quando ainda era diretor-geral do IPESP; e com um de seus colegas veteranos da Revolução de 32 e membro da antiga Força Pública de São Paulo, agora chamada de Polícia Militar. Com isso, e pelo fato de meu pai ser considerado "peixe pequeno", meu avô conseguiu que meu pai fosse libertado, somente após três meses de sua prisão, mediante o pagamento de uma considerável suma de dinheiro.
          A esposa de meu pai, Anita, foi também libertada, dois meses após ele. Foram então aconselhados por um militar aposentado amigo de meu avô a saírem do Brasil rumo ao exílio. Porém, após pedidos emocionados de minha avó, meu pai se recusou a deixar o país. Foi então que se divorciou de Anita, que seguiu para a Argentina em outubro daquele mesmo ano. Nunca mais se falaram. Meu pai, permanecendo no Brasil, prometeu aos meus avós permanecer longe das atividades clandestinas, coisa que relutou a fazer. Mas, aos poucos, ao presenciar o que ele chamava de "inoperância popular" brasileira perante à ditadura, foi se desencantado e tornando-se desesperançoso em relação à uma possível derrota e interrupção do regime militar brasileiro, acabando por afastar-se totalmente das atividades políticas clandestinas no começo de 1972.
          Porém, todos estes fatos descritos aqui, memórias daqueles tempos difíceis, jamais abandonaram meu pai. Suas convicções e ideias, seu sonho de uma sociedade brasileira mais justa e igualitária, jamais morreram. Ainda não morreram, apesar de seu enorme ceticismo político de hoje. E, por minha sorte, cada um destes ideais me foram passados, fazendo de mim o jovem igualmente politizado que sou hoje, como o sr. Joel Mário também o foi nos anos 60. E me orgulho disso. Sou filho de terrorista, subversivo, com muitíssimo orgulho.
          Hoje, 49 anos após aqueles acontecimentos de abril de 1964, a luta continua. O inimigo é o mesmo. Não pego em armas, uma vez que esta luta mudou de frente. Não é mais disputada na clandestinidade, com armas de fogo e através de ações de guerrilha. É disputada nas urnas e, principalmente, na internet. Me considero um guerrilheiro virtual. Minhas inspirações principais não são Marighella e Lamarca, e sim Luiz Carlos Azenha, Luís Nassif, Cynara Menezes, Eduardo Guimarães, Paulo Henrique Amorim, entre outros blogueiros "sujos". Sujos e subversivos aos olhos daqueles que apoiaram a ditadura militar brasileira e que dela são "filhotes" – como diria o velho Brizola – e viúvos. Sou mais um sujo, mais um subversivo. Com muito orgulho. Faz parte de mim, está no meu sangue.


segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Nulidade ideológica, desinteresse político e manipulação



          É inegável que a política está presente em todos os lugares. É inegável que ela é a força que move, em diversas frentes, nossa guerra pela sobrevivência no mundo. Há política no esporte, há política no nosso trabalho, há política na guerra, há política na paz, há política na economia e há política até mesmo nas relações sociais e no contato que fazemos com nossos semelhantes no dia a dia. É impossível, portanto, tentar negar sua existência ou tentar colocá-la de fora da vida humana. Mais intolerável ainda é tentar excluir a política da própria política. E é exatamente isso que parte da imprensa e da população brasileira estão tentando fazer.
          Política é ideologia. Ela não existe sem embasamento ou posicionamento ideológico. Até mesmo a falta de ideologia pode ser considerada um posicionamento. Alguns partidos no Brasil, como o PSD de Kassab e o novo Rede Sustentabilidade de Marina Silva, tentam fugir da rotulação ideológica, dizendo não serem "nem de esquerda, nem de direita e nem de centro" ou "nem oposição e nem situação", como declarou Marina Silva no ato de fundação de sua nova legenda - que não pretende sequer chamar-se "partido". Esta falta de posicionamento pode levar determinados grupos políticos, como estes citados, a um verdadeiro limbo.
          Ao negar-se a política, nega-se também a capacidade de se fazer uma reflexão sobre a situação do país, assim como acaba por criar uma população ignorante, desmotivada e frágil no campo ideológico. E ninguém, não só a política, sobrevive sem ideologias. Os que não as possuem, acabam sendo dominados por aqueles que as possuem. Por isso, a negação política se torna também a negação da própria civilidade e da dignidade humana. Um trabalhador que se diz apolítico, que se declara contra todo e qualquer político e livre de qualquer ideologia, será facilmente manipulado e dominado por seu patrão, caso este possua claras convicções ideológicas.
          A política é um poder. E aqueles que dominam este poder através de convicções e ideias, irão trabalhar a favor de seus interesses, reduzindo a um estado de nulidade e irrelevância aqueles que se negam a entender as relações complexas que estão contidas na vida política de seu país, estado, cidade ou comunidade. Portanto, por mais que esteja "na moda" a despolitização, a negação política e o ceticismo ideológico, é necessário que tenhamos o conhecimento de que não há nenhuma vantagem nisso. É uma manobra utilizada por aqueles que são fieis às suas convicções para dominarem os que estão ao seu redor.
          No momento em que dizemos que no Brasil não há direita e nem esquerda, estamos reduzindo nossa capacidade de raciocínio político a nada. Estamos reduzindo a política a um mero jogo sujo de interesses pessoais. É exatamente isso que querem aqueles que pretendem dominar a política: gerar desinteresse na população, para que esta seja dominada mais facilmente. A mídia é a principal intérprete desta trama. Os barões que a dominam, convictos de sua ideologia liberal, pró-mercado e pró-lucro, pretendem, através do desinteresse político do povo, torná-lo refém de suas ideias.
          É por isso que existe apenas uma arma para combater esta dominação: a politização cada vez maior da população. O engrandecimento ideológico também. O povo precisa ter noção de seus direitos e comprar ideias que os defendam. Ele não deve jamais desacreditar na política, para não se tornar escravo daqueles que pretendem manipulá-lo a favor de seus interesses. Precisamos, como cidadãos, como parte do povo, tomar a política para nós mesmo. Seja cobrando os representantes que elegemos, seja tomando parte ativa no poder. Não, o Brasil não precisa de mais políticos. Nem indivíduos e nem partidos. O Brasil precisa é de mais pessoas que acreditem na política.